19/08/2020
No Brasil, a reflexão e o debate públicos são, frequentemente, acometidos por dois vícios: a crença excessiva em soluções legais e a dificuldade de aprender com a experiência e o conhecimento acumulados. Hoje, um terceiro fator de empobrecimento está em alta: o maniqueísmo ideológico que só enxerga e propaga caricaturas da direita e da esquerda. Juntas, essas três mazelas respondem por grande parte dos problemas da Lei 14.026/2020, mais conhecida como o novo Marco Legal do Saneamento Básico.
Aprovado em junho, o projeto do novo marco foi apresentado, sobretudo, como solução para a aceleração da universalização dos serviços de oferta de água e esgoto tratados no país (e também como melhor normatização para o tratamento de resíduos sólidos, limpeza e drenagem urbanas). Trata-se, de fato, de um desafio vital e urgente para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil, que precisa ser priorizado e abordado de modo decidido, pragmático e competente.
Hoje, no Brasil, há aproximadamente 35 milhões de pessoas sem abastecimento de água tratada e quase cem milhões sem coleta de esgoto. Para piorar, cerca de metade dos esgotos existentes não é tratada.
Diante desse desafio premente, um novo modelo regulatório deveria expressar o reconhecimento das evidências disponíveis e o conhecimento mais avançado em relação ao tema. Infelizmente, o novo marco fica bastante aquém do necessário. E, tendo sido objeto de vetos da Presidência da República, que sancionou a nova legislação em julho, tornou-se ainda mais precário, revelando-se claramente como fator de risco de retrocessos que seriam desastrosos para a sociedade brasileira.
O objetivo nº 6 da Agenda de Desenvolvimento Sustentável da ONU prevê o acesso universal e equitativo a água potável e segura e a saneamento e higiene adequados para todos até 2030. O novo marco legal brasileiro prevê que o país se aproxime dessa meta com até três anos de atraso, fixando para 2033 o prazo limite para o provimento de água potável a 99% da população e para que o tratamento e a coleta de esgoto se estendam a 90% dos brasileiros.
Agora, à medida que arrefece o clima de rolo compressor que prevaleceu na reta final para aprovação do projeto pelo Congresso — operação açodada realizada durante a quarentena de prevenção à Covid-19 — e vão se evidenciando os limites e problemas do novo marco, já há quem fale em empurrar essa meta de "semi-universalização" para 2040. Se aceitarmos esse tipo de leniência, será enorme o risco de voltarmos ao perverso status quo da naturalização da violação continuada, em larga escala, do direito humano e constitucional ao saneamento.
Nesse contexto, as recentes apresentações — a primeira feita em julho, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), e a segunda, em agosto, pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em parceria com PSOL, PSB e PT — de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) dão ao Supremo Tribunal Federal (STF) a oportunidade de prover consistência jurídica ao novo marco legal, evitando os maiores riscos de retrocesso. Lançando mão de seu poder de modular a nova lei para torná-la coerente com a Constituição, o Supremo poderá também poupar o setor do saneamento e a sociedade dos novos problemas, obstáculos, desorganização e incerteza que decorreriam da manutenção dos vetos presidenciais.
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